Para que serve a comunicação? “José Saramago” – Texto na íntegra e comentário crítico


Para que serve a comunicação?

José Saramago – Escritor português. Prêmio Nobel de Literatura de 1998.

As novas tecnologias da comunicação multiplicam de modo excepcional a quantidade de informações disponíveis. Isso é ao mesmo tempo fascinante e inquietante. Fascinante porque se nota que transformações muito positivas, em matéria de educação e formação, estão ao alcance da mão. Inquietante porque tudo isso mostra um mundo sobre o qual pairam as ameaças de desumanização e de manipulação.

Um grande filósofo espanhol do século XIX, Francisco Goya, mais conhecido como pintor, escreveu um dia: “O sonho da razão engendra monstros”.

No momento em que explodem as tecnologias da comunicação, nós podemos perguntar se elas não estão a caminho de engendrar monstros de um novo tipo. Certo, essas novas tecnologias são elas mesmas o fruto da reflexão, da razão. Mas se trata de uma razão desperta, no verdadeiro sentido da palavra, isto é, atenta, vigilante, crítica, obstinadamente crítica?

Ou se trata de uma razão sonolenta, adormecida, que no momento de inventar, criar, imaginar e criar, imagina efetivamente monstros?

Ao final do século XIX, quando a ferrovia se impôs como um avanço em matéria de comunicação, alguns espíritos atrasados afirmavam que essa máquina era aterrorizadora e que, nos túneis, as pessoas morreriam asfixiadas.

Eles sustentavam que a uma velocidade superior a 50km/h o sangue sairia pelo nariz e pelas orelhas e que os viajantes morreriam em meio a terríveis convulsões.

Esses são os apocalípticos, os pessimistas profissionais. Duvidam sempre do progresso da razão, a qual, segundo os obscurantistas, não pode produzir nada de bom. Mesmo que eles estejam profundamente equivocados, devemos admitir que quase sempre os progressos são bons e maus ao mesmo tempo.

A Internet é uma tecnologia que não é nem boa nem má em si. Só o uso que se fará dela é que nos conduzirá a um julgamento. É por isso que a razão hoje, mais do que nunca, não pode adormecer.

Se uma pessoa recebesse em sua casa, por dia, 500 jornais do mundo inteiro, provavelmente seria considerada louca; e seria verdade, pois quem senão um louco pode se propor a ler 500 jornais por dia?

Alguns esquecem essa evidência quando se satisfazem anunciando que no futuro, graças à revolução numérica, nós poderemos receber 500 canais de televisão.

O feliz assinante dos 500 canais será inevitavelmente tomado de uma impaciência febril que nenhuma imagem poderá saciar. Ele vai se perder num labirinto vertiginoso de zapping permanente. Consumirá as imagens, mas não se informará.

Diz-se às vezes que uma imagem vale mais do que mil palavras. É falso. As imagens têm quase sempre a necessidade de um texto explicativo. Foi dito que graças às novas tecnologias nós chegaríamos no futuro à beira da comunicação total. A expressão é enganosa, ela deixa crer que atualmente a totalidade dos seres humanos do planeta possa comunicar-se.

Lamentavelmente isso não ocorre. Apenas 3% da população da Terra têm acesso a um computador: e os que utilizam a Internet são ainda menos numerosos. A imensa maioria de nossos irmãos humanos ignora até hoje a existência dessas novas tecnologias.

Neste momento eles não dispõem das conquistas elementares da velha revolução industrial: água potável, eletricidade, escola, hospital, estradas, trens, refrigeradores, automóveis etc. Se nada for feito, a atual revolução da informação passará igualmente ao largo dessas pessoas.

A informação só nos torna mais sábios se ela nos aproxima das pessoas. Assim, com a possibilidade de ter acesso, à distância, a todos os documentos dos quais necessitamos, o risco de desumanização e de ignorância aumenta.

No futuro, a chave da cultura não está na experiência e no saber, mas na atitude de buscar a informação nos múltiplos canais que oferece a Internet. Pode-se ignorar o mundo, não saber em que universo social, econômico e político se vive, e dispor de toda a informação possível.

A comunicação deixa, assim, de ser uma forma de comunhão. Como não lamentar o fim daquela comunicação real, direta, pessoa a pessoa?

Com obsessão, vê-se concretizar o cenário do pesadelo anunciado pela ficção científica: cada qual fechado em seu apartamento, isolado de tudo e de todos, na solidão mais terrível, mas ligado na Internet e em comunicação com todo o planeta. O fim do mundo material, da experiência, do contato concreto, carnal…a dissolução dos corpos.

Pouco a pouco nos sentimos tomados pela realidade virtual. Esta, apesar do que se pretende, é velha como o mundo, velha como nossos sonhos. E nossos sonhos nos conduziram a universos virtuais extraordinários, fascinantes, a continentes novos, desconhecidos, onde vivemos experiências excepcionais, de aventuras, de amores, de perigos. E às vezes a pesadelos. Contra o que nos advertiu Goya.

Sem que isso signifique entretanto o fim da imaginação, da criação e da invenção, pois por isso se paga muito bem.

É acima de tudo uma questão de ética. Qual é a ética daqueles que, como o sr. Bill Gates e Microsoft querem a todo custo ganhar a guerra das novas tecnologias para obter o maior benefício pessoal?

Qual é a ética dos raiders e dos golden boys que especulam na bolsa servindo-se dos avanços da tecnologia da comunicação para arruinar os Estados ou levar à falência centenas de empresas pelo mundo afora?

Qual é a ética dos generais do Pentágono que, aproveitando-se dos privilégios do progresso, das imagens sintéticas, programam mais eficazmente seus mísseis tomahawk para semear a morte?

Impressionada, intimidada pelo discurso modernista e tecnicista, a maioria dos cidadãos capitula. Eles aceitam adaptar-se ao novo mundo que se anuncia como inevitável. Já não fazem nada para opor-se. São passivos, inertes, cúmplices. Dão a impressão de haver renunciado. Renunciado a seus direitos e a seus deveres. Em particular, ao dever de protestar, de levantar-se, de sublevar-se.

Como se a exploração tivesse desaparecido, e a manipulação dos espíritos tivesse sido extinta.

Como se o mundo estivesse sendo governado por inocentes, e como se a comunicação tivesse se tornado subitamente um assunto de anjos.


Comentário crítico do texto “Para que serve a comunicação”, de José Saramago.

 

No texto “Para que serve a comunicação”, José Saramago expõe as fragilidades e impactos da tecnologia na sociedade contemporânea.

Apesar das facilidades em obter informação sobre os acontecimentos e novidades mundiais que a internet proporciona às pessoas, ela também as afasta e mecaniza a interação pessoal entre estas. É fato que a partir do momento que as máquinas com suas tecnologias ocupam o espaço que deveria ser das relações pessoais diretas, ocorre uma desumanização frente às situações apresentadas corriqueiramente; acontece uma falta de sensibilidade.

jose saramago para que serve a comunicacao blog juhroyalA internet modificou a forma das pessoas se relacionarem e essa virtualidade supõe além da insensibilidade, a superficialidade ao tratar as situações corriqueiras da vida. Como exemplo disto, pode-se destacar o fato de que ao invés de visitar alguém ou marcar um encontro pessoal com algum amigo, hoje é preferível fazer uma ligação, enviar uma mensagem de texto pelo aplicativo WhatsApp ou até mesmo fazer uma chamada de vídeo pelo aplicativo Skype. A relação “tête-à-tête” já não tem mais a mesma importância.

É fato que o advento das tecnologias “facilitando” a comunicação e as relações pessoais é motivada pela mudança da rotina na vida das pessoas. Nos grandes centros urbanos, metrópoles e megalópes, como é a cidade de São Paulo, é comum que os cidadãos morem longe de seus locais de trabalho e a oferta de cultura e lazer também fica distante das residências, uma vez que concentram-se nos centros. Por conta dessas motivações e mudanças, as pessoas têm menos tempo para interagir diretamente com seus entes e amigos e aderem à tecnologia como paliativo nestas relações pessoais.

A oferta apelativa de tecnologia pelos meios de comunicação também contribui para a sua rápida disseminação e aderência por parte da sociedade. Oxalá que a sociedade perceba que deve existir um equilíbrio na aceitação da tecnologia e que as relações pessoais diretas não emburreçam a ponto de desumanizarem-se.

Juliana Souza Rodrigues 

Comentário crítico proposto pela disciplina Comunicação Empresarial, Fatec – Zona Leste, 2015.

Sobre Juliana Souza
Relações Públicas, inglês/espanhol/italiano, estudante de Comércio Exterior *-* Amante da leitura e do cinema!

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